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quarta-feira, 12 de outubro de 2022

O Velhinho do RPG na Praça

Dizem que aquele local era um ponto de apoio para taxistas, e que antigamente aquelas mesinhas chumbadas ao chão eram para os motoristas tomarem um cafézinho e para jogarem damas e dominó entre as corridas, junto aos aposentados que alimentavam os passarinhos com os restos de pipoca comprados ali mesmo, na pracinha municipal. Logo, os aplicativos de passageiros esvaziariam de lá a maioria dos antigos taxistas, até que hoje fosse mais fácil comprar ali, de algum ambulante, cabos de carregador e fones para o celular do que pipocas recém-estouradas. Mas hoje vamos falar de um novo frequentador daquelas antigas mesas de jogos, o velho jogador de RPG.

Quando ele começou a jogar RPG fora de casa já era um senhor de meia-idade. À época, jogava nas agora tradicionais casas de jogos e ludotecas, de vez em quando nas praças de alimentação dos shopping centers, entre uma convenção e outra da sua modalidade de jogo favorita, ainda que sentisse saudades dos antigos espaços culturais gratuitos, quando encontrou uma chance de jogar no antigo ponto de apoio dos taxistas, por necessidade de abrigo do vento para seus papéis.

Mesmo quando não conseguia reunir seus conhecidos para jogar durante o happy-hour, no meio da semana, aproveitava o tempo livre para jogar sozinho naquelas mesas RPG sem mestre, sorteando nos dados aventuras-surpresa num oráculo de listas e tabelas. Algumas vezes acontecia de transeuntes se interessarem por sua atividade, então ele continuava o jogo ainda sem mestre, mas abria vagas para os novos jogadores entrarem no meio da aventura. Suas antigas amizades já eram também chefes-de-família como ele, e não tinham mais tanto tempo disponível. Ele mesmo começou a jogar com seus próprios filhos já adolescentes, iniciando uma nova geração dentre os primos praticantes de RPG na família.

A variedade de seu acervo era imensa, e ele sempre trazia sistemas de jogo diferentes à mesa. Lógico que ele sabia que Dungeons & Dragons, em sua mais recente edição, continuava sendo o sinônimo e o RPG mais jogado do mundo, e que agora todos jogavam com miniaturas em realidade aumentada projetadas sobre qualquer superfície, enquanto ele continuava reclamando do vento lá fora a carregar suas fichas, mapas e miniaturas de papelão. Pelo menos agora ele também usava um daqueles antigos escaninhos de rolar dados, para que eles não caíssem da mesa no chão. E, embora suas bibliotecas, física e digital, fossem invejáveis, mesmo já tendo se desfeito de muitos volumes por necessidade de espaço, insistia que "RPG é na mesa, e não no livro"!

Não era mais "moço", nem mesmo "tiozão", agora carinhosamente o chamavam "vozinho", enquanto seus vários jogadores já fregueses o chamavam "narrador", "mestre", "guardião", "juiz" ou qualquer outro título dado pelos autores ao administrador da experiência de jogo. Para qualquer um, podia parecer muita gente, mas ele sabia que, infelizmente, o RPG continuava a ser cada vez mais um jogo de nicho, reservado aos escassos intelectuais de um país mal-educado, a disputar o tempo livre da juventude com cada vez mais telas chamativas e jogos eletrônicos para todos os gostos. Seus esforços a manter tal tradição poderiam parecer heroicos, ou pura teimosia, porém, para ele próprio não passavam de cultivar um velho costume já arraigado, um hábito sadio que lhe trazia bom ânimo à alma e mantinha sua presença de espírito. Simples assim.

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